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Há uma ditadura instaurada sobre a cultura brasileira. Uma ditadura de lendas, mitos e histórias oriundas da América do Norte, uma imigração perversa que varre com pressa e sem precedentes o folclore, a cultura popular, a tradição oral do Brasil e da América Latina para sob um tapete de ignorância e dependência. Nessa área conflagrada, não há alternativa outra que reforçar o imaginário dos mitos daqui para as gerações mais novas, revelar que o palco do teatro brasileiro pode ser interessante e deveria ser prioridade em relação às séries enlatadas do hemisfério norte, revelar que o Negrinho do Pastoreio resguarda uma história tão intensa quanto os vampiros e lobisomens anglo-saxões. E como é bom saber que há em Guaíba quem levante essa bandeira com propriedade.
Falo de Denise Beineke, falo de Patrick Braga, falo do show Imaginário Contado, inventário musical de nossas lendas e mitos folclóricos apresentado sábado, dia 24, no Museu Carlos Nobre. Armado da voz de Denise, textura talhada para canções que versam sobre o imaginário bucólico e misterioso das lendas, mistura de ternura e selvageria, e do violão, da gaita de boca, mas, sobretudo, do acordeom dedilhado por Patrick, do acordeom dedilhado com o cuidado de quem manuseia um frágil coração – não à toa o instrumento junto ao peito –, o Imaginário Contado expele pelas cordas do violão, pelas teclas do acordeom, pelas vozes de Denise e Patrick, a mais genuína e radical cultura brasileira.
A origem do projeto é sugerida no convite, com epigrafe de Mario Corso, e foi reforçada no espetáculo por Denise, inclusive com a presença e contribuição do psicanalista e escritor. No livro Monstruário, Corso investiga as lendas e os mitos da cultura brasileira, perscruta nosso imaginário e reconcilia a cultura oral com a palavra escrita. Denise e Patrick apropriaram-se dessa iniciativa e somaram a ela o ritmo enviesado de nossa música. E nessa peculiar ciranda de três compassos, baila Tom Jobim e seu Boto, bailam Dorival Caimy e Manuel Bandeira e sua Balada do Rei das Sereias, bailam Sá e Guarabira com suas e nossas Sete Marias . Nessa ciranda de três compassos bailamos todos nós.
E se há uma ditadura instaurada sobre a cultura brasileira, se há amarras por sobre o verbo de nossa tradição oral, também há vontade de gritar Bate com o pé na pedra / Bate na pedra preta / Quem bate com pé firme e forte / Não tem medo de careta, há vontade de gritar Acenda velas quem não sabe o resto / Da velha história que eu / Cortei ao meio / E ao pé da vela deixe fumo em rama / Para o negrinho do pastoreio.* E para a nossa sorte, aqui mesmo na aldeia, há quem assuma a guerrilha, há quem se arvore do violão de do acordeom. Há Patrick e há Denise. Há ternura e selvageria. Há poesia e canção.
*Os trechos transcritos no último parágrafo pretencem às canções "Tio Barnabé", de Jards Macalé, Marlui Miranda e Xico Chaves, e "Era uma vez", de Aparício Silva Rillo e Mário Barbará.
Uma vez por mês, a Memória encontra eco na Arte aqui no Blog. Uma vez por mês, o projeto Nossa Comunidade tem História dialoga com alguma manifestação artística que tenha na Memória um de seus temas centrais.
Nossa, Guilherme, que coisa linda!
ResponderExcluirFiquei emocionada.
Muito obrigada!
Beijos!
Lindo... To quase chorando... Carregando no peito a imagem desse acordeon...
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