quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Memórias de um exílio*

Há uma geração de sulamericanos que perdeu a própria pátria. Essa que ultrapassa as seis ou sete décadas de vida, período de fragilidade corporal proporcional à maturidade mental. Alijados no próprio solo pelo próprio governo, esses desterrados rumaram a outros países, atrás de um abrigo perdido em casa. Mempo Giardinelli, escritor argentino, pertence a esta estirpe. Nascido em Resistência, amadurecido em Buenos Aires, exilou-se em terras mexicanas ainda no vigor dos vinte anos. Lá, permaneceu por quase dez anos, trabalhou como jornalista, escreveu célebres romances e germinou como tantos outros o sentimento de apátrida que ainda carrega, mesmo de volta à sua Resistência, mesmo depois de tantos anos sem regimes militares em terras latinas. O Céu em minhas mãos, seu segundo romance, constrói, com a devida amargura, o sentimento dessa geração.

É apoiado na memória, talvez o único remédio para um desgarrado, que o narrador cumpre sua romaria de estrangeiro. Sobretudo nas lembranças de Aurora. Paixão de infância. Paixão de adolescência. Paixão de sempre. Junto de Jaime, interlocutor fiel e silencioso que divide sua atenção com o leitor, ele percorre sistematicamente os caminhos que ligam o passado remoto em Resistência, a cidade interiorana e pacata numa argentina que ainda desconhecia a Ditadura, e o presente ressentido no México, quando todas as perdas e as frustrações impostas pelo exílio descansam numa pátria acolhedora, mas que jamais permite ser chamada de casa.

E assim passam diante dos olhos do leitor as espiadelas de guri no buraco da fechadura durante os banhos de Aurora, os bailes do Clube, os primeiros contatos com o sexo oposto, os esporros maternos, o amadurecimento, as farras com os amigos, o mosaico de personagens pitorescos e provincianos decalcados em sua memória, e uma conclusão trágica e cômica ao mesmo tempo: todos os desaforos que direcionara a Resistência quando novo, quando lá: a mesquinhez de cidade pequena, a hipocrisia, tudo se transformara numa saudade, numa nostalgia sem fim, numa vontade de não existir exílio, de não existir a distância de vinte anos daquele tempo, de vinte anos sem ver Aurora.

Mas é na iminência de contar a Jaime, contar ao leitor, que, de fato, encontrou Aurora, depois de duas décadas distanciados, depois de ambos casarem-se, depois de fazerem filhos, depois de a vida impossibilitar qualquer chance de se concretizar aquele sonho adolescente de viver com ela, por ela e para ela, é na iminência de relatar esse reencontro que a memória ganha contornos verdadeiramente amargos, ressentidos, ainda que uma amargura e um ressentimento resignados.

Ao mesmo tempo em que a redenção se apresenta em trajes possíveis, em que ele finalmente pode exorcizar todas as frustrações acumuladas com o amor estéril que alimentou até então por Aurora, ao mesmo tempo saltam certezas amargas aos olhos: eles já não são os mesmos de vintes anos antes, o corpo está um pouco mais velho, a mente cansada de fugir de casa, a pátria foi perdida para os gorilas militares, os filhos não têm um país para chamar de seu, como eles mesmos tiveram. “A autocomiseração também não ajuda nada. Menos ainda a consciência de ter perdido tantas coisas. Saber que sou um perdedor, um frustrado, um caro amigo da derrota, é coisa que já se tornou insuportável. Só as recordações têm alguma consistência (...) Ainda somos jovens e nos espalhamos pelo mundo, como fugidos de um formigueiro em que alguém deu um pontapé. E partimos, os que nos salvamos, os que não conseguimos (...) para impregnar de nostalgia tudo o que encontramos pela frente”.

De resto, não há alternativa a não ser seguir vivendo, resolve o narrador. A vida não permite o regresso aos sonhos com Aurora, mas ainda há os cafés, uma conversa, alguma forma de reconciliação com ela. E, enquanto as ditaduras não caem, enquanto a distância física da Argentina persiste, as memórias de Resistência seguem diluídas nos mates como um refúgio seguro, agora um pouco menos amargas, em algum canto do México, à espera do retorno pra casa.



* Uma vez por semana, a Memória encontra eco na Arte aqui no Blog. Uma vez por semana, o projeto Nossa Comunidade tem História dialoga com alguma manifestação artística que tenha na Memória um de seus temas centrais.

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