sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sangue Latino, memória universal*

Eduardo Galeano é um dos artífices principais do resgate histórico e moral que a América Latina promoveu nos últimos 50 anos. Dentro do campo jornalístico, talvez seja sua luz maior. As veias abertas da América Latina, a obra fundamental. Não é de se estranhar, portanto, que seu principal tradutor no Brasil, o jornalista Eric Nepomuceno, tenha alcançado a façanha de expandir o inventário histórico, político e literário latinoamericano a uma esfera tão submetida a dogmas nascidos no hemisfério norte: a televisão. Sangue Latino, série de entrevistas com escritores, cineastas, atores – argentinos, uruguaios, brasileiros, chilenos –, produção do Canal Brasil, já pertence ao corpo das principais autobiografias audiovisuais deste continente.
E Nepomuceno reuniu um time abalizado para acompanhá-lo nas conversas. Submetidos, entrevistador e entrevistado, sempre a uma atmosfera que remete a ambientes portenhos – inclusive nos episódios protagonizados por brasileiros –, reforçados ainda pela trilha instrumental comandada pelo acordeom e a ausência de cores, a série incorpora com autoridade a voz, a música e a alma latina.
A memória de cada convidado é desnudada lentamente diante do telespectador, processo facilitado pela habilidade de Nepomuceno em ministrar as perguntas, ele transfigurado no padre mais confiável de um confessionário pagão. E pelos olhos dele, pelos nossos olhos, passa António Skármeta, escritor chileno - autor de O Carteiro e o Poeta, que compara o boom da literatura latino americana nos anos 60, momento de fundação de um imaginário latino para o restante do mundo, com o atual momento político vivido pelo continente, quando a soberania nasce de diferentes linhagens da esquerda; passa Paulo José, como já citado; passam Ruy Guerra, Chico Buarque, Marcelo Piñeyro, Mempo Giardinelli, Ferreira Gullar, León Ferrari , além de tantos outros.
E há, claro, Eduardo Galeano. E com ele, todo o corpo desgastado por mais de sete décadas e vida e mais da metade dela em luta conflagrada contra o imperialismo, contra a memória latinoamericana escrita por penas do norte, contra a própria parcela reacionária nascida em terras latinas, colonizada, e isso, caro amigo, deve cansar. Mas ainda com os mesmo olhos azuis inflamados, o discurso reto, direto, a voz combativa porém terna renovada a cada livro, a mesma voz que redimiu a todos nós expondo as veias abertas deste continente.
Por fim, o convidado é sutilmente provocado por Nepomuceno a lançar o próprio olhar sobre o jovem que foi. Como se o continente se transformasse num ancião disposto a remontar a própria memória, e sentasse diante de um espelho rejuvenescedor para observar, desde seus olhos vincados ladeados por têmporas desbotadas por cinco séculos, as angústias, os alentos, as perdas, os erros, o caminho que escolhera à época. Sem arrependimentos ou autocomiseração. Mas com o comprometimento de reconhecer a própria história, reconhecer-se, e confrontar toda a gravidade que isso acarreta. Reconhecer-se como se é. Tão somente isso.

Acesse a página do programa, no site do Canal Brasil, clicando aqui.


*Uma vez por semana, a Memória encontra eco na Arte aqui no Blog. Uma vez por semana, o projeto Nossa Comunidade tem História dialoga com alguma manifestação artística que tenha na Memória um de seus temas centrais.

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