sexta-feira, 4 de março de 2011

Narradores da memória*



Javé, cidade do interior da Bahia de povo maltratado e trabalhador, cuja lavoura de sofrimentos é bem maior do que qualquer canteiro de posse, pois Javé é uma cidade condenada à extinção. Mas não se trata dessa extinção que o tempo impõe a todos, um sumiço gradual, que determina lentamente um lugar ao esquecimento definitivo, como que avisando aos poucos sobre sua retirada da história. Javé sumirá por obra do próprio homem, inundada por uma represa, iniciativa de beneficiamento energético. Menos para o povo analfabeto e simplório de Javé.

A única maneira de impedir a inundação é comprovar que aquele canto de terra seca esquecido por Deus possui uma história que merece ser preservada. É daí que surge a idéia: repatriar Antonio Biá, único homem letrado do povoado, exilado em dunas distantes por ter inventado histórias difamantes e enviado em cartas a parentes dos demais moradores, tudo na esperança de preservar seu emprego nos Correios da cidade – agência tão necessária para o povo analfabeto de Javé quanto um secador de cabelos na aridez nordestina. Repatriar Biá para que ele escreva a grande história de Javé, a saga de um povo que fundou na herança quase inconsciente da tradição oral o seu inventário, mas que por falta de registros e fiadores científicos, não obtém a crença dos senhores letrados da capital.

E a romaria de Biá começa, casa por casa, morador por morador, nas residências mais próximas, encravadas no centro do povoado, nos pagos longínquos, em tribos de línguas incompreensíveis, todos com a chance de contar a própria história. Ocorre que, diferente da frieza e da certeza dos documentos, as fontes humanas caminham em terreno incerto e salpicado de vaidade, sobretudo quando se trata do próprio passado. Ao passo que cada cidadão de Javé intitula-se herdeiro direto de Indalécio ou algum outro suposto fundador do povoado, embarcando todos na possibilidade de deixar a sombra que os impunha coadjuvantes – tal qual o povoado a que pertencem – e de alguma forma lançarem-se na história como protagonistas.

Diante de tanta confusão, nem mesmo os textos floreados de Biá conseguem cruzar o labirinto que enreda a memória de seu povo. Mas, assim como o desenvolvimento desenfreado não cessa de retirar ribeirinhos, condicionar comunidades a condições precárias em nome de um “todo” incerto e muitas vezes injusto, assim também é a caminhada humana, capaz de se adaptar às condições mais adversas. Basta que se tenha um palmo de terra seca, lá mesmo onde Indalécio ou algum outro antepassado resolveu assentar-se ou nalgum outro canto nordestino. Basta que tenha espaço, condições mínimas de moradia: desde sempre são as pessoas que constroem os povoados, pois a memória jamais será mercadoria a mercê de enchentes ou inundações.


Trailer do Filme

* Uma vez por semana, a Memória encontra eco na Arte aqui no Blog. Uma vez por semana, o projeto Nossa Comunidade tem História dialoga com alguma manifestação artística que tenha na Memória um de seus temas centrais.

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