quarta-feira, 23 de março de 2011

Os heróis de Quiroga*

A tragédia foi companheira perene na vida de Horácio Quiroga. O escritor uruguaio andou de mãos dadas com a morte desde a infância até os últimos anos: diante do suicídio controverso do pai; ao ingressar na idade adulta e acompanhar o suicídio do padrasto, um pouco mais tarde; quando acidentalmente matou um amigo com um disparo de pistola; além dos suicídios de seu preceptor e da primeira mulher. O próprio Quiroga também tiraria a própria vida em 1937. E até depois de morrer, onde quer que esteja, assistiu ao suicídio de dois filhos, que encerraram o fúnebre périplo iniciado com a morte do avô.

Não é difícil compreender que uma trajetória marcadamente trágica influenciou de maneira definitiva a obra do autor. Basta ler alguns de seus contos para atestar a textura pouco pigmentada, como se compusesse antíteses das comédias românticas de Hollywood, onde tudo acaba bem. Quiroga, por razões óbvias, não acreditava em final feliz. Houve, contudo, uma série de crônicas que escapou da costumeira temática lúgubre. Ou quase. Heroísmos – Biografias exemplares não chega a ser uma ode ao otimismo, mas carrega consigo aquela aura dos textos que pretendem reconciliar o ser humano consigo mesmo. Por meio de textos curtos, o autor remonta episódios emblemáticos da vida de dezesseis personagens que possuíam a abençoada, porém onerosa chaga da invenção. Homens que, em determinado momento de suas vidas, transitaram em terreno jamais habitado pelo homem e, sábios de seus ineditismos, atribuíram ao caráter da invenção importância maior do que a própria existência.

Há Edgar Allan Poe, o inventor do conto moderno, e sua honradez com a própria literatura, ainda que isso lhe impedisse a manutenção de seu alcoolismo; há Bernard Palissy, criador do esmalte, cuja obstinação em encontrar texturas e cores perfeitas fez arder no forno de ceramista os móveis de sua casa, inclusive a cama dos filhos, na certeza de seu gênio; há Richard Wagner, vulto maior da música clássica, dispensado por maestros menores quando já carregava em sua pasta obras primas que logo revelariam ao mundo mais um tributo nas dívidas da humanidade com seus gênios. Há, enfim, uma série de figuras que simbolizam o passo adiante ora dado por alguém, o passo que amplia um universo, desbrava quando desorienta, conduz. Quiroga acreditava que estes homens possuíam natureza diferente dos demais: “O homem de têmpera mediana, o homem normal, equilibrado como uma balança (...) afasta-se das chamas que o fariam arder e foge dos moribundos que o arrastariam na mesma agonia. Aquele que escolhe o outro caminho não ignora que morrerá no profundo abismo (...) apesar dessa certeza, tem um só pensamento: deve fazê-lo”.

O Projeto Nossa Comunidade tem História discorda, em parte, de Quiroga. Quer enxergar esses mesmos passos de Poe, de Palissy, de Wagner, mas nas vidas ainda anônimas dos moradores dos bairros São Jorge, Bom Fim, Santa Rita/COHAB e Ermo. Aumentar a lente da história, refém do reconhecimento célebre, e apontar nos milagres diários que uma trajetória ignota acumula. Quiroga quitou sua parte na eterna dívida que a humanidade tem com sua própria memória. Guaíba tem a oportunidade de fazer o mesmo.


*Uma vez por semana, a Memória encontra eco na Arte aqui no Blog. Uma vez por semana, o projeto Nossa Comunidade tem História dialoga com alguma manifestação artística que tenha na Memória um de seus temas centrais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário