quarta-feira, 4 de maio de 2011

Tarantino, um bastardo em estado de glória*




A História é uma senhora digna. Sempre encontra uma forma de reparar as injustiças que assiste desde o seu camarote privilegiado. Basta debruçar-se sobre a trajetória dos líderes mais terríveis, basta rememorar os impérios mais cruéis. Os mesmos líderes sempre – e não há outra maneira – morrem; os mesmos impérios sempre encontram sua derrocada. O tempo é o fiador central desse processo. Ainda assim, a mesma História, como toda ciência que transita mais na subjetividade das letras do que na exatidão dos números, comete reparações parciais. Haja vista o caso dos judeus. Nada, nem os julgamentos que condenaram nazistas à morte, prisões perpétuas, nem a posse robusta de grandes bancos espalhados pelo mundo, nem a soma de qualquer riqueza, seja na qualidade de alguma moeda, seja na aquisição de bens materiais, nada conseguiu reparar a perseguição genocida que sofreram. A História emperra na contingência dos acontecimentos. É refém da realidade. A arte, não. Isso tudo deve ter passado pela cabeça genial de Quentin Tarantino ao conceber sua obra prima, Bastardos Inglórios. Era a hora de a arte emprestar sua capacidade reformadora a um dos mais trágicos acontecimentos da humanidade.

É claro que Tarantino jamais filmaria uma ode piedosa e sóbria sobre o extermínio de milhões de judeus. Não. Tarantino nunca filma odes piedosas e sóbrias. Ele encarnou a mesma temática que molda seu trabalho desde os primeiros filmes: a mesquinhez humana, seu vícios, a fragilidade da vida, sua fugacidade, a natureza violenta, mas, sobretudo, a legitimidade de uma vingança. Foi assim nos Kill Bill Volumes 1 e 2. É assim em Bastardos Inglórios.

O filme compõe-se de dois núcleos básicos: o primeiro, protagonizado pela jovem francesa e judia Shosanna, única remanescente da chacina sofrida pela família denunciada aos nazistas por um fazendeiro vizinho; o segundo, liderado por Aldo Raine, um tenente do exército estadunidense inflado do sotaque mais genuíno do Tennessee e livre de escrúpulos, designado a comandar um grupo de extermínio de nazistas, os Bastardos Inglórios que nominam o filme.

Ao passo que a jovem ruma a Paris, protege-se por trás de um novo nome, foge aos olhos nazistas na condição de herdeira de um cinema e vê a chance de finalmente se vingar das perdas sofridas quando é intimada a fazer a première de um filme do Terceiro Reich, o insólito grupo de extermínio liderado por um Brad Pitt convincente cumpre sua saga pelo interior da França, escalpelando os soldados inimigos abatidos, tatuando com a faca a suástica na testa daqueles que sobrevivem – segundo o Tentente Raine, para que não corram o risco de esconderem-se na multidão quando a guerra acabar e o uniforme nazista deixar de vesti-los.

É a figura que liga a trajetória dos dois núcleos, contudo, o Coronel Hans Landa, Christoph Waltz (Melhor ator coadjuvante no Oscar 2010), quem rouba para si toda a história, como condutor e melhor personagem da trama. Poliglota, afetado, de modos refinados, Landa possui educação e sofisticação proporcional à crueldade e naturalidade que encarna. Seja na chacina à família de Soshanna, seja no assassinato de uma atriz alemã famosa surpreendida como agente dupla, seja ainda quando verbaliza seus ensaios preconceituosos sobre negros e judeus – e segue assim na repentina configuração na ferramenta principal para a derrota nazista.

Landa, Shoshanna, Raine, além dos caricatos Hitler e Goebbles, todos eles permitem a Tarantino travestir a Arte de História para reparar um equívoco do passado, quando o próprio Führer negou aos inimigos sua morte e manteve a marcha ariana até o último momento. Tarantino permite, através de sua obra, o acerto de contas adiado por 65 anos. Tarantino remexe numa memória que tanto envergonha e machuca a humanidade, uma memória normalmente jogada aos lugares comuns que conduzem ao martírio e à piedade. Tarantino usa de seu cinema verborrágico e sanguíneo para falar como poderia ter sido. Como deveria ter sido. Para nãos nos deixar esquecer.


*Duas vezes por mês, a Memória encontra eco na Arte aqui no Blog. Duas vezes por mês, o projeto Nossa Comunidade tem História dialoga com alguma manifestação artística que tenha na Memória um de seus temas centrais.

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